Turbine sua memória

março 04, 2010
Novas descobertas revolucionam o jeito de entender o Alzheimer — mal em ascensão, terrível por apagar as lembranças — e trazem lições preciosas sobre o que está ao nosso alcance para resguardar o cérebro. Sim, os hábitos podem pesar tanto quanto os genes na equação que dá origem à doença

por DIOGO SPONCHIATO


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Guardar o passado, decifrar o presente e esboçar o futuro — é graças a uma função cognitiva denominada memória que construímos nossa história. Sem essa precursora do raciocínio, o leitor jamais compreenderia as palavras deste texto, nem eu o escreveria. A memória é valiosa a cada minuto e conservá-la por anos a fio parece ser um dos maiores segredos de uma existência saudável. Mas, se o próprio envelhecimento pode sabotá-la, uma ameaça em especial é capaz de corroê-la, provocando um apagão que faz o ser humano perder a identidade. É a doença de Alzheimer.

Infelizmente, com o aumento da expectativa de vida, cresce também o número de suas vítimas. Por isso, os cientistas queimam neurônios para desvendar seus mistérios e encontrar uma maneira eficiente de enfrentá-la. Há algum tempo, a culpa era lançada quase que exclusivamente sobre a herança genética. Mas agora está provado: o estilo de vida é tão importante quanto o DNA na hora de dar as cartas para o Alzheimer

É o que revela um trabalho da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos, que avaliou a incidência do problema em 1 880 idosos ao longo de 14 anos. “A dieta e a atividade física modificam o risco da demência”, afirma o líder do estudo, Nikolaos Scarmeas. Os participantes que se exercitavam e conservavam um menu rico em peixes, azeite e vegetais apresentaram uma probabilidade 60% menor de sofrer o colapso neuronal. “Esses hábitos podem reduzir inflamações e a formação de radicais livres, moléculas danosas às células, além de melhorar a ação da insulina e interferir no papel de genes no cérebro”, enumera Scarmeas. “São mecanismos que afastariam o Alzheimer.”

Mas o que dispara a devastação mental? “Estamos na busca do que provoca a doença. A deposição das placas amiloides, que antes era uma das únicas explicações para o mal, é mais a sua consequência do que a sua causa”, diz a neurologista Márcia Chaves, da Academia Brasileira de Neurologia. Essas placas bloqueiam as conexões entre os neurônios. Em meio à caçada dos motivos da doença, uma equipe da Universidade de Southampton, na Inglaterra, lança nova luz sobre a treva que se apodera da massa cinzenta.

Os pesquisadores notaram, após rastrear 300 portadores do problema, um elo entre o Alzheimer e a exposição do corpo a inflamações recorrentes, traduzidas por altos níveis de uma substância no sangue, o fator de necrose tumoral (TNF). “Acreditamos que, na sua presença, há um sinal da periferia para o cérebro, que produz agentes inflamatórios nocivos aos neurônios”, conta o pai da hipótese, Clive Holmes.

Inflamação é uma forma de o organismo se defender naturalmente. Mas, ao fugir do controle e perpetuar-se, a liberação contínua de moléculas incendiárias como o TNF não é nada bem-vinda — inclusive para a cachola. “Problemas marcados por processos inflamatórios crônicos, caso da obesidade, do diabete, da artrite e da doença cardiovascular, poderiam contribuir com o Alzheimer”, especula Holmes. Em outro trabalho, o neurocientista demonstrou que infecções em geral aceleram o declínio cognitivo em pessoas que já têm a demência. E por que o ataque de um micróbio em qualquer canto do corpo pode ser tão cruel para a massa cinzenta? Porque invariavelmente desperta inflamações.

Ninguém sabe ao certo se está aí, nas inflamações, a origem do mal, mas, no mínimo, o fenômeno amplifica a falência do cérebro. “Estamos numa fase de juntar as peças do quebra-cabeça”, analisa o neurologista Paulo Caramelli, da Universidade Federal de Minas Gerais. O que conforta é o fato de a medicina ter nos ensinado recentemente que uma dieta balanceada, aliada à atividade física, ajuda a aplacar o incêndio e preservar as artérias, minimizando o risco de o Alzheimer aparecer.

Pululam pesquisas que relacionam o mal neurodegenerativo a condições influenciadas pelo estilo de vida. No Brasil, estudiosos mostraram uma associação entre a ruína da memória e a resistência à insulina — quando o hormônio que carrega o açúcar para as células não trabalha direito. Daí por que já se pensou que o Alzheimer seria uma espécie travestida de diabete. Na Suécia, um trabalho atesta que a obesidade conspira a favor do declínio mental. E o colesterol alto estimularia a progressão das placas amiloides. “Assim, os hábitos que reduzem o risco cardiovascular também protegeriam contra o Alzheimer”, diz o psiquiatra Cássio Bottino, do Hospital das Clínicas de São Paulo.

A maioria das iniciativas científicas visa não só decodificar a gênese do Alzheimer como também propiciar um diagnóstico e um tratamento certeiros. “É provável que os primeiros eventos da doença ocorram dez ou 15 anos antes dos sintomas”, diz Caramelli. Ainda não conhecemos todos os genes envolvidos nem contamos com um método de detecção 100% confiável. “O diagnóstico é feito por exclusão”, afirma Márcia Chaves. A esperança está em um exame de sangue ou uma técnica de imagem capazes de dedurar o mal.

O desafio também é hercúleo no campo da terapia. “Hoje os remédios atuam na redução dos sintomas, mas não sabemos se interferem no progresso do Alzheimer”, diz Cássio Bottino. Vacinas que promovem uma faxina nas placas amiloides ainda não obtiveram êxito. Por outro lado, passam por testes drogas que atuam nas proteínas que, uma vez destrambelhadas, azucrinam os neurônios. “Minha impressão é que até agora agimos como um astrônomo que, ao mirar uma estrela no céu, enxerga, na verdade, somente o seu brilho irradiado tempos atrás. Precisamos chegar mais cedo à doença”, avalia Caramelli.

No que depender dos centros de pesquisa, a missão será possível em um futuro próximo. Mas não podemos aguardar sentados. Está claro que nossas atitudes ajudam a erguer uma muralha contra o Alzheimer e qualquer outra sombra que ouse se estender sobre a memória (leia e guarde a tabela ao lado). Nem os cabelos brancos devem ser desculpa para relaxar e aceitar lapsos constantes. “Perdemos neurônios com o avançar dos anos, mas não conhecemos o impacto disso sobre a memória”, diz o neurocientista Martín Cammarota, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Ora, idade só virou sinônimo de sabedoria devido à nobre capacidade de reter e acumular conhecimento.

Para os especialistas, não restam dúvidas: um dos principais conselhos para preservar a memória é jamais aposentar o cérebro. Nada de torturá-lo. “A recomendação é fazer o que a gente gosta”, diz Bottino. “Leia se você tem vontade de ler”, exemplifica Cammarota. Ou, se for o caso, faça cálculos ou se empenhe nos jogos que ilustram esta reportagem. O convívio social também estimula e protege a massa cinzenta. “Estamos finalizando um estudo que insinua que pessoas com um parceiro têm uma melhor saúde cognitiva”, conta Caramelli. E mesmo o alto-astral, ao subjugar o estresse, reforça a defesa dos neurônios. A felicidade de hoje, veja só, ajuda a recuperar os bons momentos de ontem.

Enquanto ficamos antenados no que fazer para turbinar o cérebro, saiba que pesquisadores decifram, aos poucos, o complexo funcionamento da memória humana. E as revelações devem repercutir, em breve, diretamente em nossa cabeça. Por que nos lembramos de um episódio e nos esquecemos de outros, por exemplo? As respostas começam a ser delineadas e já ambicionam aplicações terapêuticas. “Podemos, um dia, interferir no controle da memória, apagando as recordações dos traumas e aprimorando a recuperação de alguns eventos”, vislumbra Cammarota.

Na ausência dessas pílulas pró-memória, fica o convite para que, independentemente da idade, você registre as lições listadas por aqui e adote os hábitos que evitam a evaporação das lembranças. Ninguém precisa ser como Funes, o memorioso, personagem do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899- 1986) que recordava, insuportavelmente, cada detalhe do universo ao seu redor. Mas não é exagero sentenciar que a vitalidade também depende de que guardemos, nos meandros da mente, cada capítulo da nossa história.

O Alzheimer

Descrito pelo médico alemão Alois Alzheimer (1864-1915) há mais de 100 anos, o mal responde hoje por metade dos casos de demência, acometendo cerca de 20 milhões de pessoas no globo. Ele é caracterizado pelo depósito de placas amiloides no cérebro, que interditam a comunicação entre os neurônios, e uma anomalia na proteína tau, que participa do transporte de moléculas entre as células nervosas. Tudo isso leva a uma degeneração neuronal sem volta.

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